Do Rivotril à Tribo
Existem horas na vida em que sentimos uma vontade quase incontrolável de mudar. Claro que temos. Mas mudar da forma como passei a noite inteira pensando é, no mínimo, coisa digna de uma boa dose de Rivotril.
Pensei... Índio. Isso mesmo. Quero ser índio. E dos legítimos — não esses do nosso tempo que usam celular e tênis da Nike.
Quero voltar a viver numa tribo raiz — daquelas de verdade, como as dos nossos ancestrais —, andar pela mata virgem vestindo um belo modelito feito de penas coloridas e colares com dentes de lobo, espinhas de piranha e ossos de javali. Para completar o traje, um imponente penacho — que, aliás, deixou completamente nuas duas araras e dezenas de canários-da-terra. Ah, ia me esquecendo: na perna, uma fita do Senhor do Bonfim, porque proteção é boa em qualquer lugar e época.
A tranquilidade da vida na tribo é algo natural. As crianças obedecem aos mais velhos — como deve ser —, já que o mais idoso é a grande celebridade do pedaço. E foi justamente isso que reforçou ainda mais o meu desejo. Só de imaginar poder dizer a uma criança: “Não entrar floresta sagrada. Espírito grande urso branco pegar pequeno raio”, e ela realmente acreditar que, em plena floresta tropical, pode encontrar um urso polar... é lindo demais! E esse estilo de comunicação, tipo telegrama dos antigos, eu domino com maestria. Já passei muitos. Sou praticamente bilíngue em vocabulário reduzido.
Aí você, meu amigo ou amiga, pode perguntar: “Maluco, e o lazer?”
E eu respondo: é o que não falta por lá. Todo dia tem dança. Dança pra chuva, pro sol, pra caça, pra... enfim. E ainda tem aquela dança especial, quando a filha do curandeiro comemora o pedido de noivado. Achando que o bravo guerreiro Flecha Ligeira está casando por amor e não por ordem do pajé, ela e todas as moças da tribo passam horas se maquiando diante de um espelho presenteado por um caçador branco, pouco antes de virar sopa.
A dança do noivado se estende por todo o dia. Elas fazem coreografias de deixar Carlinhos de Jesus admirado com a simplicidade e leveza dos movimentos. Aqueles passos marcados na terra mãe, repetidas vezes sem fim, como se estivessem na “pisa da uva” para o preparo de um bom vinho — com o diferencial da nuvem de poeira, claro.
A noiva surge com o corpo pintado em cores vibrantes, mas cuidadosamente suavizadas para valorizar suas curvas. Exibia uma variação de adornos que iam das penas às conchas do mar. Uma pena de pomba branca — com a ingrata missão de tentar cobrir as partes — deixava, estrategicamente, uma pequenina parte à vista do futuro marido.
Todos nós assistíamos tranquilamente, sentados em volta, sem selfies, sem filmagens — apenas olhos atentos e silêncio cúmplice. Ainda pude ouvir alguns bochichos: diziam que no noivado de Potira e Cauã (sem ser o Reymond), o buffet tinha mais variedade.
Veja, meu amigo, que tranquilidade de festa. Nada de lembrancinhas, convidadas indiscretas querendo pegar o buquê na tapa, nem bêbados sem fim de ir embora. Quando terminou esse espetáculo — que durou quase uma micareta —, o noivo deu umas espreguiçadas, dois bochechos, e todos entenderam que era hora da consumação do matrimônio.
Pegou a linda noiva nos braços e seguiu em direção à oca nupcial, distante o bastante das demais — porque, convenhamos, curioso tem em todo lugar.
O dia mal raiava e a jovem esposa, com um sorriso no rosto, cantarolando e vassoura na mão, já dava uma geral no salão de festas. À tarde teria a dança do noivo e da noiva.
Bem, meus amigos e amigas, fiz um desafio a mim mesmo: escrever algo que me viesse à cabeça. E, do nada, me surgiu esse tema.
Luciano Fernandes
Enviado por Luciano Fernandes em 02/07/2025
Alterado em 02/07/2025